Perene

Thursday, December 29, 2005

O Matrimônio

Judite teve uma infância e adolescência liberada de qualquer norma, compromisso ou responsabilidade, não prestando conta sequer de seus atos aos seus pais.
A única exigência a ela feita foi quanto aos estudos, o que foi bem cumprido, mesmo porque gostava de ir à escola e tinha facilidade de aprendizagem das disciplinas, notadamente naquelas ministradas por professor.
Praticou muitas peraltices e traquinagens, tomando boa parte do espaço destinado à “comportamento” do seu boletim, porém sem trazer danos para si ou para outrem. A presença de sua mãe e às vezes de seu pai perante a direção da escola era acontecimento banal. Os castigos e punições normalmente aconteciam, mas as bagunças permaneciam.
Judite cresceu nessa atmosfera de acontecimentos. Era seu mundo. Trocava de namorado semanalmente, como político troca de partido, sem dar satisfação a ninguém, até conhecer Marinho, moço simpático, participante, que logo no início do primeiro período universitário destacou-se na equipe de natação e no coração da serelepe Judite.
Do “muito prazer” da apresentação, passando de passagem pela “paquera” e rapidamente pelo “selinho”, o casal chegou como um raio ao “contacto imediato do 3° grau”, sem cuidados ou precauções, causando, pela primeira vez, conseqüências definitivas em forma de gravidez.
A notícia da fecundação pegou de surpresa os pais de Judite, que apesar da criação com rédeas soltas, viam na filha maturidade suficiente para evitar um acidente de percurso. Mas logo se recuperaram da má notícia, pois anexo a ela, lá estava a boa nova: eles seriam avós.
Apesar de formar um casal moderno, eles sonhavam para a filha um casamento com vestido branco e longo, véu e grinalda, luvas e buquê, sem esquecer Cartório e Igreja, com bela recepção para os convidados.
A futura vovó materna, após longos anos de sonhos, já tinha tudo planejado e agora, em face de emergência, era só executar.
O futuro vovô materno, detentor de ganho financeiro, digamos satisfatório, já tinha uma verba extra para eventualidade, mesmo profunda, como praticara sua filha.
Marinho, apesar de ainda jovem e estudante, já exercia a profissão de corretor de imóveis juntamente com seu pai e levava folgada vida financeira.
Todos queriam o casamento e se programaram para as bodas, mas foram detidos por uma situação muito peculiar: a noiva não queria nem falar em casamento, fosse ele religioso ou apenas legal.
Os pais já estavam desesperados em imaginar a barriga da filha crescendo, sem dar satisfação à família, aos vizinhos, aos amigos e aos colegas de trabalho. Após muitos encontros, desencontros, reuniões, desuniões, brigas e discussões, ameaças e choros, Judite concordou com os planos do pai: fazer um casamento fictício, com festa, apenas para dar as devidas satisfações à comunidade.
O grande plano:
O pai de Judite tinha em seu rol de amigos um que conhecia um advogado que já exercera o cargo de Juiz de Paz e era um cara legal e topava tudo.
A mãe de Marinho tinha um primo que conhecia um ex-padre que abandonara o clero para assumir um casamento e que faria o que o pai de Judite queria.
Uma amiga da mãe de Judite, participava de grupo de senhoras que organizavam movimentos pastorais e conseguiu alugar o salão da Igreja em dia que não havia programa religioso.
A execução do plano:
Além da decoração do salão, seria colocada uma mesa extra, coberta com toalha e acessórios próprios de um altar católico, tendo por trás, na parede, uma cruz de madeira com um metro aproximado de altura, onde após cerimônia civil proferida pelo “Juiz de Paz” portando um livro semelhante aos de uso cartorários, se realizaria uma pequena celebração religiosa pelo “pároco” conhecido do primo da mãe de Marinho, quando na oportunidade seria justificada a cerimônia naquele local, em virtude de obras que estariam sendo realizadas no interior da Igreja.
O erro fatal:
No dia da cerimônia, os convidados foram chegando e se acomodando nas mesas e cadeiras distribuídas pelo salão. O bar já se encontrava aberto e ao alcance de todos os presentes. O serviço era de auto-atendimento e estavam à disposição deles: wisky, vodka, vinho, chope e refrigerantes, além salgadinhos em grande variedade e quantidade. Como é natural no Brasil, a cerimônia atrasou hora e meia e quando a noiva chegou foi recebida com apupos, palmas, assobios e gritos além do som que se encontrava ligado, em alto volume, denunciando a quantidade de bebidas alcoólicas já consumidas.
Até colocar-se tudo em ordem para o início daquele acontecimento, outra hora se passou e várias garrafas ficaram vazias, elevando ainda mais o grau de algazarra reinante no ambiente.
Entre os mais exaltados, estavam o ex-Juiz de Paz e o ex-Padre. Algumas picuinhas familiares, entre vizinhos e envolvendo colegas de trabalho, já se encontravam em debates à voz alta. O número de brigões era maior que os pacificadores e foi assim que começou o falso matrimônio.
O Juiz de Paz cambaleou até o altar e com o copo de vinho numa mão, pegou o microfone com a outra e bradou no copo: “Vamos brindar à futura mamãe”! A maioria não entendeu nada, mas foi por pouco tempo, porque o Padre levantou-se e gritou: “Cale a boca idiota. Ninguém sabe que a noiva está grávida”! O Juiz retrucou: “Quando um bebum fala o outro murcha a orelha”! Alguém grita: “É burro, seu besta”!
O besta, quer dizer, o Juiz continuou: “Estamos aqui reunidos para enchermos a cara depois desse casamento fajuto”... O Padre dirigiu-se à mesa e pegou o Juiz com as duas mãos pelo paletó e disse: “Isso era pra dizer depois, na mesa de fofocas, não agora, “seu” asno. Deixe que eu faço o casamen...”
Não terminou a frase porque foi interrompido com o microfone quebrando sua cabeça. Os parentes do padre e do Juiz rolavam em agressões pelo chão do salão enquanto outros brigavam por motivos torpes.
Um ex-policial deu voz de prisão a todos e também entrou no sopapo. Alguém usou uma arma de fogo furando o telhado metálico e os convidados se jogaram no chão enquanto as crianças corriam gritando.
O estampido e a gritaria assustaram a vizinhança que acionaram a polícia e logo estavam todos na delegacia.
De quarentena na DP, apenas ficaram o “Juiz”, que respondia inquérito policial por falsificação e exercício ilegal da profissão por ter sido excluído da OAB há cinco anos; o “Padre”, que gozava de liberdade condicional por cumprir parcialmente pena criminal por pedofilia; o “policial” que fora expulso da PM por envolvimento em roubo e seqüestro e o sujeito que estava armado por ser fugitivo da Penitenciária Estadual e estava de penetra na festa.
No dia seguinte o caso estava nos jornais com fotos cedidas sob tarifas por vizinhos fofoqueiros e depoimentos jocosos dos convidados, tornando tudo num escândalo total. Judite lia o jornal pela terceira vez e disse radiante:
“Eu não teria feito melhor. Que barato”!

5 Comments:

  • At 1:07 PM, Anonymous Anonymous said…

    Que matrimônio mais divertido! Ele me remeteu aos causos que o meu marido conta sobre os casamentos feito pelo pai dele, que foi Juiz de Paz ( de verdade).
    Gravidez fora do casamento ainda é tabu em muitas famílias. Mas forçar um casamento por esse motivo não é uma medida acertada. É muito difícil o casamento vingar após o nascimento do denunciador dos apressadinhos que se fartaram com a sobremesa antes do jantar.
    Bem! voltando ao conto, um casamento feito sob medida para Judite, a heroína da história.
    Ih! Agora, me enrolei toda. Judite é heroína, ou vilã?

     
  • At 12:13 PM, Anonymous Anonymous said…

    Que historia mais engracada
    mas afinal,quem é Judite ?

     
  • At 5:57 PM, Blogger brasil said…

    Lurdes,

    O conto é fictício, mas muitas passagens jocosas foram por mim presenciadas na minha vida de Escrivão em Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais, quando processei vários casamentos. A personagem do conto recebeu o nome de Judite, em homenagem à minha irmã que teve um comportamento social muito além de sua época.

     
  • At 4:22 PM, Anonymous Anonymous said…

    entendi !!
    seu potencial é um absurdo mesmo
    onde posso comprar esse livro ?

     
  • At 4:09 PM, Blogger brasil said…

    Lurdes,
    Não houve objetivo mercantil quando da confecção deste livro.
    Muito antes falta gabarito para isso.
    O motivo principal foi satisfazer um desejo meu e a impressão foi feita de, apenas, 40 unidades que foram distribuídas entre parentes e amigos (coitados).
    Outros amigos mostraram sua amizade para comigo e ofereceram sacrifícios, reclamando por uma unidade também. Foi aí que resolvi exibi-lo na Internet.
    Obrigado pelo elogio. Aceito todas as críticas, inclusive as favoráveis.

     

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