Perene

Thursday, December 29, 2005

O Cajado

Jerusalém estava mais agitada que nunca. Seu comércio sempre foi muito importante para aquela região e além disso seu calendário religioso trazia, periodicamente, uma multidão de peregrinos que chegavam para as festas ou cumprir com suas obrigações divinas.
Para qualquer estrangeiro, a cidade oferecia muitas novidades no comércio, no comportamento e na política, visto que a comunidade vivia sob o julgo do Império Romano.
Ali se encontravam cidadãos de toda a sociedade, grupos de várias áreas do comércio, políticos, religiosos e até conspiradores que sonhavam em se livrar da opressão romana e, em conseqüência, dos altos impostos e tributos cobrados por César.
Jeremias, próspero criador, proprietário de bens imóveis e comerciante de sucesso, acabara de chegar à cidade e procurou hospedagem para um bom banho e um pouco de descanso, antes de começar seu trabalho e cumprir suas obrigações de cidadão e temente a Deus.
Primeiro foi ao mercado local onde, nas redondezas, acomodou seus dez servos e quinze camelos que compunham a caravana que ele liderava, trazendo para os mascates locais, dentre outros produtos, vestimentas e tapetes de lã de boa qualidade, queijo e carne ovelhuns conservados no sal.
A viagem durou alguns dias e foi cansativa para ele, seus serventes e animais e alcançou a cidade no fim da tarde e depois de acomodado e alimentado, Jeremias dormiu profundamente.
Na manhã seguinte, durante o desjejuar, manteve os primeiros contatos com os outros hóspedes para colher as informações de seus interesses, quando ouviu pessoas comentando sobre um Judeu que Pilatos ordenara prender, acusado de heresia e incitação do povo contra o Império Romano, cuja pena é executada pelo cruel ritual da crucificação.
Passou a manhã com seus criados, incumbido de seus afazeres e no começo da tarde foi ao Templo fazer suas ofertas a Deus e pagar dízimos seus e de sua família.
O movimento era grande e o assunto era único: a possível crucificação que começaria a qualquer momento. A curiosidade por aquele acontecimento foi crescente desde que lhe chegou aos ouvidos.
Havia três anos que, pela primeira vez, alguém lhe falou, em algum lugar de suas andanças, que um Judeu pregava paz, amor, e vida eterna, fazendo milagres por toda a Galiléia, se dizendo filho de Deus.
Também chegou ao seu conhecimento que esse Homem que se denominava Cristo, o Messias, era apenas um agitador que lutava contra o domínio de Roma.
Os rumores contra e a favor cresceram no último ano, despertando a curiosidade de Jeremias que agora tinha a oportunidade de saciá-la.
Juntou-se a um grupo de peregrinos e seguiu em direção a praça que defrontava um dos Palácios do Governo local; no caminho obteve mais informações sobre a vida de Jesus e indagou o porque de tanta violência; se Jesus mentia quanto à filiação paterna e se era de fato um revolucionário que combatia Roma sem armas e sem insultos, a pena era, sem dúvidas, um elevado padecimento.
Ao chegar à cena do infausto julgamento, viu Pilatos lavar as mãos e entregar Jesus aos seus algozes, que já haviam começado o flagelo à sua vítima.
Jeremias era um homem de muito trabalho, de muita ocupação e nunca se dispôs a assistir cenas públicas que envolvessem multidão; por isso estava surpreso consigo mesmo, pelo interesse de acompanhar aquele nefasto desfile até o Calvário.
A multidão postada de ambos os lados das ruas estreitas e que depois seguiam aquele martírio deixava Jeremias cada vez mais longe de Jesus;
Jeremias resolveu seguir uma rua sem movimento que o levou antecipadamente à elevação onde aconteceria o sacrifício final. Do elevado, Jeremias via ao longe a procissão que seguia Jesus e Sua cruz, Suas quedas, gente que tentava ajudar, como uma mulher que Lhe enxuga a face e um homem que tenta Lhe dar água e outro que O ajuda a levantar a cruz, como também aqueles que O ofendiam e cada vez mais que o cortejo se aproximava, mais Jeremias se sentia angustiado, sofrido, temeroso, amargurado, como se o Judeu fosse um ente querido.
O Homem chegou com Sua cruz e teve Sua última queda e antes de levantar-Se pela última vez, virou o rosto e olhou em direção a Jeremias.
Aquela fisionomia parecia conhecida, apesar do sangue que banhava Seu rosto, mas os olhos e aquele quase sorriso fizeram Jeremias tremer e cair.
A multidão cada vez mais empurrava e os soldados romanos cada vez mais brutos, empurravam as pessoas pra trás.
Jeremias afastou-se e procurou respirar fundo para restabelecer seu bem estar, coisa que pouco lhe aconteceu, apesar dos seus quase setenta e três anos de idade.
A respiração voltava ao normal, mas sua cabeça insistia em viajar para trinta e três anos atrás quando uma Criança, uma estrela brilhante e Deus, resolveram atravessar juntos, um dia de sua vida e que trouxeram felicidade e prosperidade para ele, sua família e estendal à sua região.
Nunca mais ele teve notícias daquelas pessoas que participaram daquele nascimento, mas aqueles olhos, aquele quase sorriso e aquelas palpitações que fizeram seu coração pular dentro do peito naquela ocasião, repetiam-se igualmente agora lhe dando a certeza da identificação daquÊle Homem que, nesse momento, apesar da agonia de estar pregado na cruz, parecia sereno ao falar algo para alguém imaginário a quem chamava de Pai.
Sua morte veio precedida de muito sofrimento e seguida de uma escuridão repentina apesar do meio-dia, chuva forte, raios e trovoadas que afugentaram as pessoas presentes.
Jeremias voltou trôpego para a hospedaria e procurou com os hospedeiros, informações de onde morava a família de Jesus; foi informado apenas onde Ele se reuniu com seus pares antes de ir preso, e então, Jeremias seguiu para o endereço fornecido.
Em lá chegando, deparou com um prédio abandonado, a porta principal da residência entreaberta, louças provavelmente da janta, ainda sobre a mesa; duas lamparinas se esforçavam para lançar seus últimos raios de luz através de duas exíguas chamas, uma em cada lado da grande mesa, presas às paredes. O quadro que se apresentava denunciava emergência por parte daqueles que ocupavam o imóvel, em face de grave ocorrência.
Seus olhos negros e tristes deslizavam lentamente por aquele cenáculo e ele tentava rever os acontecimentos que culminaram com a prisão de Jesus.
Algo familiar lhe chamou a atenção e o fez pular em direção a um cajado, semelhante a qualquer outro, que se encontrava num canto da sala.
Pegou aquele bordão com carinho, levou-o até a lamparina mais próxima, leu o nome escrito a fogo bem ao meio: Bessil.
Era o nome de seu pai.

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