Perene

Friday, December 30, 2005

Oh! Linda...

Entrincheirados no pequeno Forte do Carmo, soldados portugueses ansiosos e temerosos só contavam com um razoável número de brasileiros nativos, índios catequizados e negros escravos malocados nos morros e matas de Olinda, para defender a cidade com unhas e dentes, no mais verdadeiro sentido da palavra.
A vista era bela e romântica, mas quem participava daquele funesto encontro prometido, as dezenas de caravelas holandesas que pontilhavam de branco o encontro do verde do mar com o azul do céu no horizonte pernambucano, sabia da impossibilidade de rechaçar aqueles marinheiros bem liderados e preparados para a invasão.
Armadilhas preparadas, lanças afiadas, espadas limpas e amoladas e canhões apontados para o leste com suas balas empilhadas ao lado daquelas máquinas mortíferas.
A noite se aproximava e a concentração cada vez maior das naves nos arredores de Olinda indicava ser para amanhã a grande batalha.
Os soldados examinavam seus uniformes, suas armaduras, seus esquisitos chapéus laminados, ajustados por tiras de couro por baixo do queixo; apertavam os largos cintos que seguravam além das calças, facas e machadinhas que faziam estragos quando atingiam o inimigo.
Fora do Forte, as mulheres e crianças, em sua maioria já tinham sido encaminhadas para as terras distantes das praias; as que ficaram, além de preparadas para a luta, ainda tinham as funções de enfermeiras e cozinheiras e eram elas que abasteciam de munição os pontos de resistências.
A noite se fez e o dia seguinte se anunciou belo e brilhante completamente alheio à peleja desigual que estava começando.
Os poucos que conseguiram dormir, despertaram com os primeiros tiros de canhão que do Forte tentavam acertar as primeiras caravelas que se aproximavam do litoral; a resposta não tardou e balas de ferro rompiam paredes e derrubavam os prédios residenciais mais próximos à praia; não distinguiam os grandes, charmosos, belos, coloridos casarões dos nobres moradores, das pequenas e simples, mas também coloridas moradias dos mais pobres.
As primeiras horas da batalha passaram rapidamente e os primeiros marinheiros holandeses desembarcaram na praia olindense provocando as primeiras lutas corpo-a-corpo e em conseqüência as primeiras baixas sangrentas.
O dia passou deixando na praia muitos mortos e milhares de soldados marinheiros já instalados nas trincheiras cavadas nas areias brancas, tingidas de encarnado pelos corpos decapitados e desmembrados.
À noite, devido à escuridão, as lutas cessavam e davam lugar ao socorro dos feridos e sepultamentos dos mortos em covas rasas e sem cerimônias.
Ao amanhecer, a peleja para a tomada do Forte tornou-se uma carnificina e à tarde a fortificação capitulou incondicionalmente.
Foi-se a tarde e veio a noite trazendo para os defensores de Olinda muita preocupação e inquietação, já que a batalha seria de casa em casa e muito mais sangrenta e estúpida que até então.
Roberto é um dos centenas de homens que luta desde o início da invasão para defesa de sua família, propriedade, liberdade, sua cidade amada e de Sueli, sua namorada querida que não quis, de forma nenhuma, seguir para o interior.
Preferiu com orgulho ficar com as demais mulheres que auxiliavam os heróicos combatentes, dentre eles o seu bem amado.
Roberto não estava ferido, somente exausto da luta que participa desde as primeiras horas e não tinha sequer dormido; mandou chamar Sueli, sua amada, para que cuidasse da sua roupa e comida, enquanto tentava dormir; ela chegou, prestou-lhe a ajuda pedida e deitou-se ao seu lado para usufruir daquele raro momento de paz.
O sono foi profundo e o amanhecer do terceiro dia trouxe do longe ruídos estranhos, muita zoada, gritos que pareciam lamentos ou loucura coletiva e batidas frenéticas de tambores e notas musicais de instrumentos de sopro.
Roberto e sua companheira ainda estavam embriagados pela luta, cansaço, expectativa e temor daquela briga insana e grotesca; ele mal tinha forças para abrir os olhos; sua cabeça associava o som às imagens da batalha.
Os holandeses subiam as ruas estreitas e tortuosas ateando fogo a tudo e todas as propriedades que encontravam pela frente, enquanto os moradores da Vila tentavam rechaçá-los lutando cada um como se fossem três; as imagens da resistência eram contagiantes pelas bravuras, mas constrangedoras, pela violência.
Agora os negros desciam em bloco cantando alto seus gritos de guerra e batendo tambores nos ritmos africanos; as ruas perpendiculares eram invadidas pelos índios com seus arcos e flexas, como também lanças e tacapes e arrastavam muitos populares.
Os idiomas conhecidos e estranhos falados aos gritos se misturavam com vários ritmos tocados e cantados. Sem dúvidas as lutas já estavam sendo travadas embaixo de sua varanda; Roberto morava num sobrado, com sacada para a rua, junto ao Mercado da Ribeira, onde dentre as mercadorias e animais, eram vendidos os escravos.
O dever, a honradez e a sobrevivência clamavam por Roberto e ele não era homem de fugir da luta. Com um esforço sobrenatural, abriu os olhos, levantou-se com dificuldade, sentindo enjôo e ânsia de vômito e se dirigiu para a porta que dava acesso à pequena varanda que era para ele a janela do mundo.
Antes de abrir a pesada porta trabalhada a mão com seus pequenos detalhes e pintada de amarelo ouro, ouviu os brasileiros nativos em grupo cantando hinos como se estivessem ganhando a guerra:
“Olinda /quero cantar /a ti / esta canção/ teus coqueirais/ o teu Sol / o teu mar / faz vibrar meu coração / de amor / a sonhar / minha Olinda sem igual / salve o teu carnaval ...”
Roberto abriu a porta e se pôs na varanda, pouco mais de três metros acima da maior folia espontânea de rua: o carnaval de Olinda.
Enquanto sua cabeça lentamente caminhava para a realidade depois de dois dias sem descanso, de muita bebida e muita folia, fugindo do pesadelo de quatrocentos anos atrás, ele podia ver e ouvir, dos dois lados da rua, imagens e sons como uma colcha de retalhos:
Blocos de maracatus, frevos, caboclinhos, maracatus rural, afoxés, mascarados, bonecos, etc, arrastando multidões e trazendo seus nomes tradicionais nos seus estandartes, tais como:
Vassourinhas, Elefante, Estrela Brilhante, Piabas, Homem da Meia Noite, Mulher do Dia, Menino da Tarde, Barba Papa, Segura a Coisa, Guarda Noturno, Maluco Beleza, A Corda e outra centena de blocos populares.
Roberto finalmente acordou, ajeitou sua fantasia de soldado português do século XVI, correu para Sueli, que estava vestida de Maria Bonita e levantou-a de forma brusca, arrastando-a pelo braço. Desceu a escada de dois em dois degraus e ganhou a rua com sua espada de plástico na mão, para não perder o ultimo dia de batalha...
Batalha de confete e serpentina do carnaval olindense, mesmo sabendo que ainda teria a quarta-feira com o Bacalhau do Batata e outros.
Quarta-Feira de cinzas?
Só mesmo no tempo dos holandeses!

19 Comments:

  • At 6:31 AM, Blogger brasil said…

    Braço forte (Via Comunidade Pernambuco - Orkut)
    Muito bom Paulo...
    poucas vezes nós encontramos tópicos tão bem intencionados como esse,que você muito gentilmente nos ofereceu. Li do princípio ao fim e se puder vou comprar teu livro.
    A comunidade Pernambuco não suporta mais esse partidarismo "enjoado" e mesquinho onde meia dúzia de prós tentam convencer os contras o que nunca eles mesmos acreditariam.
    Essa reconstituição dos momentos dramáticos que antecederam a invasão holandesa em Olinda , da forma como foi contada , é uma leitura fácil , instrutiva e cativante.
    Um abraço.

     
  • At 6:35 AM, Blogger brasil said…

    Valério (Via Orkut)
    Gostei!

     
  • At 6:38 AM, Blogger brasil said…

    João Paulo (Via Orkut)
    Paulo
    Foi um ótimo post, me debrucei sobre o computador para acompanhar seus bons textos falando da nossa terra, Brasil e todo seu conhecimento. Pessoas assim dão uma certa luz aos nossos conhecimento e nos estimulam a buscar cada vez mais sobre essa bela cultura.

    Adoro a música e literatura pernambucana, mas não tenho muita ligação com pessoas que tenham o mesmo gosto que eu. Seria muito bom se você nos presenteasse com cultura pernambucana, principalmente musica e literatura!!!

     
  • At 6:41 AM, Blogger brasil said…

    Ana paula & Godô (Via Orkut)
    Paulo Brasil
    reafirmo que vc me emociona com tão delicados e cativantes textos poéticos.
    pense! vc transformou meu sábado normal em um dia mais cheio de luz!!!

    Parabéns mais uma vez!

     
  • At 6:42 AM, Blogger brasil said…

    Eudes
    - As palavras me abandonam para exclamar tamanha felicidade... Sem dúvidas, é um dos melhores textos que já li em minha vida... Vou imprimi-lo...

    ...Como a Ana Paula escreveu: “ vc transformou meu sábado normal em um dia mais cheio de luz!!!”

    Abraços!

     
  • At 6:46 AM, Blogger brasil said…

    alvaro (Via Orkut)
    legal
    quando começei a ler pensei que seria mais uma chatice relatando herócias batalhas mal contadas. No final, me senti em pleno carnaval da minha "OLINDA SEM IGUAL". Parabéns.

     
  • At 6:52 AM, Blogger brasil said…

    αlison ® -¹™
    TEXTO SINGULAR!!!!!!

    Qualquer comentário é pouco! Mas, me atrevo a dizer que foi uma das coisas mas fantásticas que já li!

     
  • At 6:57 AM, Blogger brasil said…

    Lenivaldo (Via Orkut)
    Paulo Brasil
    Um nordestino de mente aberta e antenado com o novo tempo

    Parabéns amigo

     
  • At 6:59 AM, Blogger brasil said…

    Anônimo
    Paulo Brasil.
    Obrigado pelos elogios,acho que eu não mereço tantos!
    Quanto ao livro,eu já comecei a ler,mas tem um problema que foi detectado primeiro pelo meu ídolo Ariano Suassuna:Como é que eu vou me balançar numa rede manuseando um PC?

     
  • At 7:01 AM, Blogger brasil said…

    Ho! Ho! Ho ஜMR♥
    Paulo Brasil, gostei do que li... pois literatura é contar histórias legais de um jeito especial.
    Hoje lendo seu texto, me coloquei no seu lugar, e consegui, através do seu texto, sentir e ver tudo o que descreveu...
    Anônimo, adorei a rede também...

     
  • At 7:04 AM, Blogger brasil said…

    O SOBREVIVENTE®­
    Não li tudo , mas gostei!

     
  • At 12:03 PM, Blogger brasil said…

    Olá grande poeta Paulo,
    Adorei isto, até pq conheço bem de perto, já morei no centro de Olinda. Magnifico teu conto!
    Parabéns!

    bjs! Diná

     
  • At 10:41 PM, Blogger brasil said…

    Olinda Pernambucana (Via Face Book)- Muito linda sua declaração de carinho e amor a essa cidade tão rica, cheia de cultura e linda Olinda, da marim dos caetés, da ribeira da sé dos 4 cantos, totalmente linda. Obrigado por compartilhar conosco e com todos os cidadãos Olindenses esta bela e emocionante homenagem.

     
  • At 10:43 PM, Blogger brasil said…

    Esse texto foi lavrado no ano de 2004, num momento de solidão e saudades por mim sofrido em terras do Rio de Janeiro. Não atenou para fatos didáticos do evento da invasão holandeza nem para os fatos verídicos constantes dos livros de hiostória. Mas tão somente para atender um sofrido coração que apanhava covardemente da saudade Olindense. Muito obrigado por ter publicado.

     
  • At 10:44 PM, Blogger brasil said…

    Olinda Pernambucana (Via Face Book) - Não poderia ser diferente! Uma manifestação pura de amor e saudade! Parabéns!

     
  • At 10:48 PM, Blogger brasil said…

    Andrea Tavares Via Face Book) - Olinda histórica, Olinda guerreira. Rica, bela e forte.....texto maravilhoso para retratar a cidade que me adotou.....Amei. Parabéns!

     
  • At 12:52 PM, Blogger brasil said…

    Oh! Linda... Estava amando como você romanceou a invasão holandesa ... de repente, você me transporta outra vez para o século XXI. Surpreendente e envolvente! Ainda bem que ainda temos a quarta-feira-de cinzas! Vamos brincar!

     
  • At 12:56 PM, Blogger brasil said…

    This comment has been removed by the author.

     
  • At 4:39 PM, Blogger brasil said…

    O comentário acima e' de Sônia Regina Machado, via Facebookn

     

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